Interlúdio (1946), de Alfred Hitchcock

Billy Joy Vargas
6 min readMay 28, 2021

Alfred Hitchcock realiza em Interlúdio um trabalho mais econômico narrativamente, em comparação com outros suspenses de sua extensa filmografia. O diretor aborda a história de maneira muito direta, sem grandes voltas na trama, fazendo com que o final pareça até abrupto para o espectador acostumado com os demais filmes do diretor.

Desde o início, o filme trabalha em dois aspectos principais: a atividade de espionagem da protagonista Alicia, e a sua relação amorosa com o agente Devlin. Funcionando como premissa, e estabelecendo um senso de dever para a progressão narrativa, a trama de espionagem se desenvolve de modo vago, até superficial. Por outro lado, todas as interações entre Alicia e Devlin carregam uma força que vai muito além do que é dito.

As oscilações entre Devlin e Alicia pautam o tom de Interlúdio

O estilo de Hitchcock ficou marcado por um formalismo na construção visual de suas cenas, aliado à progressão narrativa por meio de tramas intrincadas. Entretanto, em Interlúdio esse equilíbrio se faz menos presente, sendo muito mais marcante o desenvolvimento visual que o diretor realiza através de recursos bastante frontais e, de certo modo, simples. Pode-se dizer que a narrativa progride através da explicitação de detalhes. O formalismo de Hitchcock se manifesta pelo muitos planos-detalhe utilizados, de modo a sugerir aspectos mais importantes para cenas específicas, como a chave na mão de Alicia, o rótulo do vinho e a xícara de café com veneno.

Hitchcock utiliza destes planos detalhes para construir relações entre os elementos da história. Quando a mão de Alicia segurando a chave é focalizada, isso se dá através de um longo zoom que localiza a personagem dentro da festa na mansão, como que explicitando um segredo que existe por trás de todo aquele jogo solene de aparências que se faz presente. A partir de uma sugestão implícita no diálogo entre Alexander e sua mãe, o filme evidencia a presença de algo estranho no café de Alicia quando conecta o plano detalhe da xícara, por meio de um uso bastante frontal de pans, à presença da personagem da mãe, ameaçadora e no controle da situação.

O plano detalhe como evidência do segredo…

Se as relações citadas são, de fato, muito frontais, e construídas de forma até bastante prática se tratando de Hitchcock, o filme também apresenta alguns motifs por meio dessa decupagem atenta aos detalhes. É interessante como o objeto da garrafa de vinho reaparece no decorrer da narrativa, porém evidenciando diferentes aspectos trabalhados no filme. Primeiramente, é o enquadramento especial dado à garrafa esquecida por Devlin no escritório da agência, que funciona como símbolo do rompimento da fantasia de romance do personagem, dando lugar ao dever pelo qual o filme se utiliza de premissa. Quando novamente esse objeto se fará presente em plano detalhe, já será em uma relação mais direta com a trama de espionagem.

Entretanto, apesar dessa diferença no uso simbólico do objeto, há um sentimento em comum (ainda que em diferentes níveis) que permeia ambos os enquadramentos: o de traição. Isso se faz mais evidente em sua segunda aparição, quando Alexander descobre, através do rótulo do vinho, que Alicia está o espionando. Mas também existe esse sentimento na primeira situação. A garrafa esquecida, como já dito, simboliza a volta ao dever, o rompimento momentâneo do aspecto romântico existente na relação entre Alicia e Devlin, mas esse rompimento não é tratado com um fatalismo dramático. Na verdade, existe uma tensão reprimida, uma espécie de raiva, na cena que sucede o plano da garrafa deixada para trás. É como se Devlin e Alicia se sentissem traídos, não pelos atos de cada um, mas pela volta à realidade, pelo fim do romance à luz de velas que se desenhava no horizonte. Uma complexidade de sentimentos e situações articuladas de modo tão econômico e frontal que somente cineastas da estirpe de Hitchcock conseguiriam realizar sem cair num didatismo rasteiro.

…ou como sugestão de um sentimento.

Tanto Alicia quanto Devlin parecem oscilar entre a negação do romance e a insinuação dele. Os conflitos internos destes personagens, marcados pela dúvida de um amor (e, principalmente, da possibilidade de ser amado) e a incerteza perante a continuidade da farsa montada pelo trabalho de espionagem, fazem com que a oscilação sentimental se torne um aspecto marcante do filme, pois, salvo o breve momento de ilusão romântica em suas chegadas ao Rio, ambos parecem nunca estar em perfeita sintonia de sentimentos.

Ainda nesse sentido, é interessante como Hitchcock consegue reforçar a ideia do filme ao unir as filmagens de externas do Rio de Janeiro com os personagens em estúdio, uma predileção bastante característica do diretor. Por conta deste recurso, Alicia e Devlin ficam muito destacados do restante do cenário, como se todo o resto fosse realmente um pano de fundo para o que é mais importante de fato: a relação afetiva entre o casal, e como isso se constrói no meio dos percalços.

Alicia e Devlin no Rio, ao menos superficialmente.

Essa maior importância os afetos, em comparação com a trama de espionagem, se faz presente até no suposto vilão do filme. Podemos perceber como Alexander está muito mais preocupado com a integridade da imagem de sua família do que realmente em todo aquele plano obscuro. A presença mais marcante de sua mãe na parte final do filme acentua muito bem isso. É como se Alexander fosse um adulto infantilizado que quer ser levado a sério ao fazer parte de uma sociedade secreta, mas que corre para a proteção materna ao primeiro sinal de problemas.

E é como um cineasta no total domínio de sua unidade estilística que Hitchcock conduz a cena final de Interlúdio, ao colocar em conflito todos os aspectos até ali abordados pela narrativa e reforçar sua ideia principal. Primeiramente, o modo como Devlin reage, de maneira até vaga, quando ouve as descobertas de Alicia ao chegar no quarto já funciona como um direcionamento para o que realmente importa. Na sequência disso, ocorre finalmente o choque entre o espaço fechado da reunião secreta e a saída do casal pelas escadas, e a acentuação do tom sugerido pela cena anterior. É nesse momento que Hitchcock fragmenta o tempo para evidenciar a situação em suas múltiplas circunstâncias: todos os gestos e falas nessa cena ajudam a construir uma tensão que deixa de lado o aspecto objetivo da espionagem para dar lugar às preocupações essencialmente de afetos humanos, do perigo que cerca Alicia até a imagem irretocável de Alexander sendo ferida.

Com uma força marcante, o filme se encerra numa súplica daquele que é visto ao longo de todo o filme como o vilão. Assim como Alicia e Devlin, Alexander quer fugir daquele ambiente, escapar para um mundo mais humano. Não é como se Hitchcock buscasse, com isso, vitimizar esse personagem de motivações tão escusas, mas sim acentuar o aspecto mais humano da narrativa como um todo. Se todo o filme se constrói num tom de busca por afetos humanos como fuga da realidade dura do pós-guerra, nada mais natural que os personagens centrais buscassem, ao final da narrativa, escapar totalmente daquele universo simbolizado pelas impassíveis figuras à porta da mansão.

O plano composto: Uma fuga, uma súplica e uma realidade a ser enfrentada.

Como mencionado, o final de Interlúdio acaba, à primeira vista, soando abrupto para o espectador já acostumado com as reviravoltas narrativas da filmografia de Hitchcock. A questão é que o filme não se debruça mais detalhadamente aos planos da trama de espionagem porque esse efetivamente não é o grande ponto de interesse. O que importa, de fato, é o modo em que essa situação se manifesta como adversidade às figuras humanas do filme e, principalmente, como essas situações adversas resultam na construção de um relacionamento entre duas pessoas, até então cínicas e calejadas pelos eventos de um passado recente.

Recentemente, falei aqui sobre O Terceiro Homem, de Carol Reed, e como o diretor abraça um sentimento de desesperança em seu noir britânico, construído por personagens moralmente danificados pelo período da guerra. Como um contraponto a isso, Interlúdio parece um rito de esperança de Hitchcock. Ainda que um tanto agridoce nesse sentido, o aspecto essencialmente humanizado de uma narrativa tão marcada pela presença de reminiscências da guerra sugere uma visão mais voltada ao indivíduo e seus afetos, em detrimento da impessoalidade opressiva de grandes planos de agências de espionagem.

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Billy Joy Vargas

Propondo ideias e expandindo meu conhecimento sobre a sétima arte.