Wife of a Spy (2020), de Kiyoshi Kurosawa

Billy Joy Vargas
3 min readJun 4, 2021

Wife of a Spy possui aspectos de um filme de espionagem, com alguns plot twists bastante característicos do gênero, mas não é exatamente dessas viradas que a dramaturgia do filme se alimenta. São revelações até previsíveis, visto que partem de algumas decisões um tanto precipitadas dos personagens, coisas que se resolvem de maneira muito simples, como se algo presente nas cenas sempre indicasse que se trata de uma encenação.

E me parece ser exatamente esse o ponto do qual Kiyoshi Kurosawa articula a narrativa. É como se tudo no filme servisse como um comentário metalinguístico entre a encenação no ato de fazer filmes, e a encenação própria da espionagem. É uma dialética entre o drama real daqueles personagens e o drama amplificado na ênfase dada pela câmera.

A cena em que a personagem da esposa é apresentada já indica bem isso: a ação se inicia de modo misterioso, existe uma carga de tensão presente ali, e só alguns momentos depois que percebemos que se trata de uma encenação para um filme. É como se Kurosawa já nos avisasse acerca do caráter dúbio do que será apresentado em tela.

Existe, claro, um drama legítimo desenvolvido a respeito da situação do casal. A estilização visual das cenas contribui muito para isso, Kurosawa utiliza uma luz externa muitas vezes estourada, que invade os espaços internos e dá contornos bastante expressivos aos ambientes e rostos dos personagens, contribuindo para toda uma dramatização das cenas. Entretanto, ao mesmo tempo em que isso acontece, existe uma certa amplificação exagerada dos papéis que estes personagens desempenharam na tragédia que se sucede no Japão.

Tal qual uma atriz autoconsciente de seu protagonismo em um filme, a jovem esposa enxerga os seus atos como realmente decisivos para a devastação de seu país, como se ela fosse a protagonista de toda essa história de guerra. A cena final de bombardeio evidencia bem isso, no modo como a personagem sai para fora do hospital e vê uma cidade devastada. Com a jovem caminhando sozinha entre as ruínas, a câmera se mantém muito focada em seu trajeto, e não vemos muito o que acontece além disso ao seu redor. Todo o cenário parece um tanto artificial, como se ela estivesse realmente em um set de filme de guerra. Alguns planos, inclusive, se assemelham muito ao cenário de devastação apresentado no filme 1917, outra obra recente que explora bem um aspecto mais fantasioso da guerra.

A sensação que fica é de que a personagem entra em um certo transe de culpa no qual se vê realmente como a causadora direta de tudo aquilo. É Kurosawa explorando o drama da história para evidenciar um caráter performático e artificial que é o próprio cinema em si.

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Billy Joy Vargas

Propondo ideias e expandindo meu conhecimento sobre a sétima arte.