Pulp Fiction: Tempo de Violência (1994), de Quentin Tarantino

Billy Joy Vargas
6 min readMay 23, 2021

Pulp Fiction ficou marcado na memória do público por conta da sua iconoclastia decorrente de cenas específicas. Podemos citar, por exemplo, o diálogo inicial no carro entre Jules e Vincent, a cena de dança no clube retrô, ou até mesmo a trilha sonora marcante, com músicas que ganharam notoriedade justamente pela presença em cenas do filme. Porém, nesta revisão feita, o que mais me marcou essencialmente foi a relação que Tarantino estabelece com a violência no cotidiano dos personagens, pautada por uma adoração à ícones de alto valor simbólico.

A iconoclastia de Pulp Fiction vai além do seu valor objetivo.

Tarantino articula uma ideia de manifestação dos sentidos mais primitivos do homem, através da fascinação pelos objetos e o que eles podem representar. Essa relação é desenvolvida de modo mais imediato pela presença da maleta com o conteúdo reluzente, que nunca é revelado. É interessante como o filme se fecha em sequências nas quais a maleta é o gatilho para cenas de violência e disputa de poder. Muito mais do que o conteúdo em si, Tarantino está interessado em explorar a relação dos personagens com esse objeto e os desdobramentos disso.

A maleta misteriosa é valorizada pelo que representa…

Assim como no exemplo da maleta, o relógio dourado de Bud acaba sendo o fio condutor de toda a violência do seu segmento. Nesse caso, a relação acaba sendo mais frontal, já que o filme desenvolve um contexto histórico que dá valor mais aparente ao objeto. Contexto este que reforça bem a ideia de ícones como símbolos para conflitos violentos, visto que o relógio tem toda uma trajetória de guerras e mortes em si. Apesar de, neste caso, Tarantino desenvolver essa relação mais direta com as motivações por trás da valoração do objeto, ainda há espaço para a ambiguidade, construída por um personagem que verbaliza muito pouco suas intenções, mas que se agarra nesse objeto como um totem de perseverança. Bud explode repentinamente quando descobre que seu relógio ficou para trás, transfigurando-se na imagem do homem ameaçador que assusta os mais vulneráveis, tal qual Jules em sua sequência inicial, onde a aparente normalidade de uma conversa cotidiana entre o personagem e Vincent é rompida pela violência quando a maleta surge em cena.

…assim como o relógio dourado é importante simbolicamente para Bud.

Analisando como o filme ficou marcado na memória popular, afirmo que o próprio fenômeno iconoclasta que se tornou a figura de Mia Wallace acaba sendo um indicativo da relação que Tarantino estabelece no filme. Mia possui um visual e uma atitude muito marcantes dessa figura de “femme fatale”, e Tarantino explora um lado até mais fetichista no modo como filma a personagem em cena. É por isso que, mesmo na ausência de um objeto propriamente dito, o fascínio pelo ícone segue presente no seu segmento. Mais do que isso, esse ícone permanece indissociável da violência que ele pode, ainda que indiretamente, causar, levando em conta a figura de Marselus Wallace como sombra em torno de toda a escalada de tensão da cena de overdose.

Mia Wallace icônica e fetichizada: mais um símbolo no universo de Pulp Fiction.

O que torna, de fato, toda essa relação que Tarantino estabelece muito orgânica dentro do filme é uma atitude nunca totalmente verbalizada, uma atitude na qual a violência é condição natural na vida daquelas pessoas. É nesse sentido que os diálogos verborrágicos do filme são marcantes não somente pelas suas peculiaridades, mas principalmente pela naturalidade com que os personagens lidam com essas conversas, que em qualquer outro ambiente pareceriam absurdas. Dentro do universo de Pulp Fiction, a conversa sobre banalidades pode muito bem anteceder, por questão momentos, a violência explícita.

Além disso, podemos perceber como a violência aqui é tratada de maneira mais sóbria do que em outros filmes de Tarantino, especialmente em comparação com suas três últimas obras. Há uma preocupação maior em evidenciar um aspecto ameaçador e caótico nas sequências violentas, em vez de propriamente vibrar com tudo aquilo. Em alguns momentos, o diretor utiliza até câmera na mão para reforçar a desorientação causada por tais atos.

É verdade que Tarantino acaba pesando a mão em demasia nessa construção verborrágica em alguns momentos, especialmente no segmento envolvendo o personagem vivido por Harvey Keitel. Ocorre uma quebra, no sentido de que o filme deixa de lado um aspecto mais imersivo para se tornar, momentaneamente, muito autoconsciente acerca desse universo sui generis. Toda a cena de Keitel tentando resolver o problema do carro acaba se perdendo muito no fascínio por essa suposta figura mítica do Mr. Wolf. O filme reduz seu ritmo, e essa mudança não contribui efetivamente para a sua unidade. Tarantino dá muita atenção para o modo de agir do personagem, seus maneirismos, como que tentando emular uma versão caricata saída de algum filme de máfia do Scorsese, e não exatamente conectada ao universo de Pulp Fiction.

O criador e sua criatura: Mr. Wolf cai de paraquedas na cosmologia do filme.

Se no segmento de Keitel a divisão episódica promovida por Tarantino fica muito acentuada, é preciso dizer que os demais segmentos trabalham bem em torno dessa ideia de violência naturalizada e de sua relação iconográfica. Outro aspecto no qual o diretor é bem-sucedido, no sentido de diluir a estrutura episódica, está relacionado à quebra de linearidade. É preciso reforçar que essa escolha narrativa está longe de ser apenas um recurso para tornar o filme formalmente mais pretensioso. Se esse recurso ficou banalizado com o passar das décadas, foi devido ao seu mau uso por cineastas que desejam esconder alguma fragilidade na unidade estilística de seu filme, ou simplesmente para ganhar a aceitação de uma cinefilia que analisa filmes através de fórmulas de qualidade. Para o caso de Pulp Fiction, a não linearidade funciona muito bem por dois aspectos principais.

Primeiramente, o fato de o final não ser realmente o fim da história no tempo narrativo contribui para a ideia que Tarantino desenvolve, ao sugerir uma espécie de círculo vicioso em torno da violência retratada. É como se o roubo e o ato de apontar a arma para alguém fossem situações inevitáveis dentro daquele mundo, e que o “levar a melhor” nesse conflito é algo apenas momentâneo.

Em segundo lugar, uma estrutura mais tradicional poderia culminar com um final de tom moralista, possivelmente prejudicando bastante a ideia geral do filme. Enquanto Jules entra num processo de busca por redenção, após vivenciar o que ele entende ter sido um milagre, Vincent mantém uma postura bastante cética com relação a isso. Nesse momento, já sabemos que Vincent continuará na sua profissão e, logo em seguida, acabará sendo assassinado. O grande ponto aqui é que, por inverter essa ordem, Tarantino acaba por acentuar muito mais a ideia de ciclo violento inevitável, ao invés de um moralismo a respeito do destino fatal de um personagem que, ao contrário do seu companheiro, nega qualquer tipo de redenção.

O ciclo de violência que renega qualquer moralismo.

No fim das contas, o que importa mesmo em Pulp Fiction não é discutir o que tem dentro da maleta, ou se Jules realmente largou sua vida de capanga, e sim o recorte de uma sociedade violenta em si. Tarantino constrói isso magistralmente através de uma montagem inventiva e de uma caracterização muito própria daquele universo. O homem com uma arma em Pulp Fiction não tem muito para onde correr, pois em cada canto ele encontra uma nova forma de violência, um novo desafio à sobrevivência. Indissociável a ele está o objeto manchado de sangue, essa espécie de ícone a ser idolatrado, seja isso um relógio, uma maleta, ou até mesmo uma figura feminina fetichizada.

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Written by Billy Joy Vargas

Propondo ideias e expandindo meu conhecimento sobre a sétima arte.

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