Narciso Negro (1947), ou um ensaio sobre Pressburger e Powell: entre o novo e o tradicional

Billy Joy Vargas
9 min readJul 10, 2021

A dupla de cineastas Emeric Pressburger e Michael Powell possui uma filmografia dotada de obras com diferentes temáticas e abordagens. São narrativas que se desenvolvem de modo não linear (Coronel Blimp — Vida e Morte, 1943) ou convencional (A Canterbury Tale, 1944), com apegos por uma simbologia mundana (Os Sapatinhos Vermelhos, 1948) ou até mesmo numa abordagem sobrenatural (Neste Mundo e no Outro, 1946). Por conta disso, Pressburger e Powell podem se encaixar no rol de diretores versáteis de sua época, como Howard Hawks e Billy Wilder.

Entretanto, assim como para os demais citados, tal adjetivo não configura uma ausência de olhar artístico próprio nas obras da dupla britânica. Existe, na maioria dos filmes de Pressburger e Powell, a construção de um universo tradicional, que se apresenta já estabelecido, normatizado e dotado de personagens com um alto senso de dever. Esse ambiente é então, em diferentes níveis, perturbado pela chegada do novo, por aquilo que, de algum modo, desafia a tradição e coloca à prova as crenças de seus personagens. Nascidos e criados em uma sociedade de costumes e hierarquias tradicionais, Pressburger e Powell souberam muito bem traduzir um senso questionador ao status quo britânico através de diferentes temáticas e abordagens. O cinema da dupla é, essencialmente, um cinema de embates entre o tradicional e o novo.

Em Coronel Blimp — Vida e Morte (1943) há o embate entre a tradição militar britânica e a necessidade de uma nova atitude perante um conflito de brutalidade nunca antes vista. Os diretores desenvolvem de modo muito evidente essa ideia desde a cena inicial, na qual os procedimentos, invasivos e desrespeitosos, dos novos militares invade o ambiente seguro do personagem que dá nome ao filme, um coronel consagrado e símbolo do “modo antigo de se fazer guerra”. Blimp necessita, então, dar espaço a uma nova geração que surge para manter viva, ainda que atualizada, a tradição na qual o protagonista foi moldado. Nesse sentido, o desfecho do filme carrega certo otimismo, ainda que sem deixar de lado uma nostalgia da era perdida, nas concessões de Blimp perante a necessidade de uma nova geração e um novo modus operandi com relação ao ofício beligerante.

Coronel Blimp-Vida e Morte (1943)

Ainda durante o período da Segunda Guerra, os diretores lançam A Canterbury Tale (1944), um filme no qual essa relação entre tradição e contemporaneidade se faz presente, mas é articulada de modo mais solto. A narrativa progride essencialmente na relação entre os jovens soldados do período da guerra e uma garota, enquanto há um mistério a ser desvendado que põe em risco, mesmo que de modo pouco contumaz, a integridade destes personagens. Simultaneamente a isso, o filme desenvolve a ideia do choque entre a vida dos jovens no conflito emergente e a tradição centenária daquele local, historicamente marcado pela passagem dos peregrinos. No decorrer do filme, descobrimos que esse choque é o que realmente motiva os principais eventos misteriosos da trama. Assim como em Coronel Blimp, a cena final de Canterbury Tale sugere uma espécie de acordo entre celebração da tradição e emergência do novo.

A Canterbury Tale (1944)

Tanto Coronel Blimp quanto Canterbury Tale foram realizados durante a Segunda Guerra Mundial. Ambos possuem em seus finais um sentimento de otimismo na busca por um equilíbrio entre tradição e contemporaneidade. Existe, nessas obras, uma preocupação dos cineastas em encontrar na arte uma maneira de lidar com a situação ameaçadora que o novo conflito trouxe aos costumes britânicos, além de articular certa mobilização em torno da temática do esforço de guerra. Nos anos subsequentes ao conflito, os diretores lançam Narciso Negro (1947) e Os Sapatinhos Vermelhos (1948). São filmes que também lidam com essa relação entre o espaço estabelecido e a chegada do novo, porém ambos possuem um maior pessimismo em seus desfechos. Seria um reflexo da desilusão de Pressburger e Powell com a sociedade que emerge do pós-guerra?

Os Sapatinhos Vermelhos estabelece, também, um universo de tradição e liturgias. Contudo, enquanto os filmes anteriores tinham suas tramas envolvidas num ambiente militar, potencializados pelo conflito contemporâneo, em Sapatinhos os diretores articulam o senso de tradição através da arte e, especialmente, da austeridade de seus criadores. Esse ambiente que, mesmo artístico, é dotado de procedimentos austeros e sacrifícios por parte de seus integrantes, entra em conflito com o novo, representado pela protagonista, que ousa desafiar a rigidez de seu diretor, como a nova estrela do grupo de teatro. O desfecho, ao contrário das obras que a precedem, não é de coexistência harmoniosa entre estes contrastes. Ao tentar equilibrar vida amorosa e dever profissional num universo normatizado, Victoria Page sucumbe. Como que entorpecida pela confusão de sentimentos, ela foge de ambos os lados e caminha para a tragédia.

Os Sapatinhos Vermelhos (1948)

Ainda que lançado anteriormente a Sapatinhos Vermelhos, tomo a liberdade de analisar Narciso Negro por último, por conta de suas ambiguidades e particularidades estéticas. Aqui, o contraste entre tradição e novidade é evidenciado de maneira mais ambígua. Em termos de trama, a chegada do novo é representada pelo grupo de freiras que se estabelece em um palácio e numa sociedade imbuída de tradições conflitantes com as da doutrina católica ocidental.

Entretanto, a narrativa desenvolve de modo sutil uma inversão nessas representações. Ao focar na forma com que as irmãs lidam com esse ambiente adverso, Pressburger e Powell estabelecem um dilema de difícil solução: o que é novo e o que realmente é tradicional variam de acordo com a perspectiva que adotamos. Se na visão ocidental, e no universo pré-estabelecido das protagonistas, a fé católica e suas liturgias representam uma tradição, isso se inverte quando o foco muda para uma sociedade que não se baseia nesses preceitos.

Indo além, o filme se utiliza desse conflito cultural para desenvolver o conflito interno, pondo em prova a própria rigidez litúrgica do grupo de freiras e abrindo espaço para a manifestação de desejos reprimidos. É interessante como, inicialmente, Narciso Negro sugere um caminho mais convencional para a trama: o estabelecimento gradual de laços entre freiras e população “selvagem” aos olhos ocidentais. Porém, essa construção afetiva mostra-se incipiente. Não há um desenrolar de aprendizado mútuo entre irmãs e nativos, não há uma progressão sustentável de familiaridade entre estes dois universos. Ao invés disso, o filme explora muito mais os efeitos dessa situação adversa na fé e memória daquelas mulheres.

Narciso Negro (1947)

O filme desenvolve esses efeitos primordialmente a partir da protagonista Clodagh, vivida por Deborah Kerr. Porém, a centralização nessa personagem serve como recurso para evocar uma atitude geral perante a situação das freiras. Existe uma espécie de busca escapista destas mulheres, uma evocação nostálgica de sentimentos não concretizados, como uma forma de lidar com o ambiente adverso no qual se encontram. Responsável pela jardinagem, Irmã Philippa substitui a plantação de alimentos necessários por flores, deixando de lado suas incumbências em prol de uma fantasia de contemplação da beleza, como forma de entorpecimento de suas dificuldades.

É especialmente com Irmã Ruth que essa situação toma forma e conduz a narrativa a seu clímax derradeiro. É uma abordagem quase freudiana que se desenvolve na relação entre esta personagem e Clodagh. Enquanto esta última busca inibir seus sentimentos e viver dentro do senso de dever que mantém intacta uma tradição (configurando assim os flashbacks como a única forma de escapismo), Ruth possui uma impulsividade que se manifesta na incapacidade de lidar com as agruras do dever e com os sentimentos que a presença masculina de Dean produz.

Mas não é somente o arco dramático de suas personagens que Pressburger e Powell exploram para desenvolver suas ideias de choque entre novo e tradicional. O uso do technicolor aqui é conduzido de modo impecável na sugestão de sentimentos e motifs que permeiam a narrativa. A austeridade do branco e do cinza nos cenários e figurinos ressalta uma atitude particular e estabelecida do grupo de freiras, contrastando com o visual colorido e burlesco das paredes do palácio, antigamente habitado pelas mulheres do antigo general. Mais marcante ainda é como o primeiro sinal mais claro de perturbação no cotidiano das irmãs se dá pela saliente inserção do vermelho: em uma cena tomada de tons cinzentos, a roupa de Dean e o sangue no hábito de Ruth indicam uma conexão que será explorada no decorrer do filme.

Agindo de modo complementar à austeridade e impessoalidade dos cenários, o sentimento de adversidade se manifesta até mesmo no ambiente em off, como no vento, onipresente, que invade quaisquer espaços habitados e parece pontuar toda a dificuldade de aproximação entre freiras e nativos. Também recorrente é a presença de uma trilha sonora com motivos tribais, por vezes ambígua com relação à sua natureza diegética, construindo um comentário a respeito da dificuldade de coexistência entre tradições locais e dogma católico.

Nem mesmo na presença do personagem ocidental existe o conforto necessário para se alcançar uma existência harmoniosa entre as culturas. Ao invés de abraçar a fé comum às suas origens, Dean assume um cinismo com relação a isso. Tudo contribui, portanto, para o sentimento de desencanto que evoca a nostalgia por parte de Clodagh. É através dos flashbacks que o filme evidencia um descolamento entre os procedimentos de fé e o estado de espírito da personagem. Não por acaso, essas lembranças vêm à tona durante momentos que deveriam ser de fé contemplativa, como na oração. Não há como seguir uma liturgia tradicional quando todo o resto do ambiente entra em choque com isso.

A cena final, centralizada em Ruth e Clodagh, marca de modo derradeiro todas as contradições exploradas no filme. É interessante como toda essa cena se desenvolve com um caráter de terror psicológico. A iluminação, que até então era tomada por um aspecto high key que servia para ressaltar os contrastes mais marcantes do próprio technicolor, adquire um caráter mais lúgubre. A decupagem dos diretores estiliza e amplia um aspecto de suspense na perseguição que se dá, adiantando até o que seria feito pelos giallos em décadas posteriores. O vermelho torna a aparecer como motif na roupa de Ruth, na iluminação e na presença de pequenos pontos do cenário, como flores, que sugerem a presença de Ruth, ameaçadora em diferentes níveis para Clodagh. O que essa cena evoca, particularmente, é um sentimento de medo por parte de Clodagh. Um medo que foge do aspecto mais objetivo dessa perseguição e da atmosfera lúgubre da mise-en-scène. É um medo que possui relação profunda com os sentimentos que a personagem busca reprimir ao longo de todo o filme, e que se manifestam de maneira muito clara em Ruth.

Pode-se perceber até um caminho mais retórico e moderno que se apresenta aos cineastas nesse sentido: Ruth representa uma figura da imaginação de Clodagh, uma manifestação dos sentimentos reprimidos pelo seu ego. Evidentemente, não é o que Pressburger e Powell realizam de fato. Ainda que atingindo seu clímax numa cena final bastante estilizada, até maneirista em sua estética, o filme não se descola totalmente do realismo.

No fim das contas, o desfecho daquela incursão acaba sendo aquele sugerido por Dean no início do filme. Entretanto, longe de se limitar ao simples fracasso na tentativa de “educar” a população nativa, a retirada se dá pela insuficiência daquelas irmãs em canalizar sua fé num senso de dever dentro daquele ambiente adverso. Os aspectos mundanos gradualmente tomam conta de suas ações. O conflito entre novo e tradicional sai do campo mais objetivo e se confunde com os próprios questionamentos internos de cada irmã. Narciso Negro é, portanto, uma provocação. Pressburger e Powell parecem provocar não somente o espectador, como também suas próprias filmografias, no rompimento da até então visível linha entre o que é novo e o que é estabelecido.

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Billy Joy Vargas

Propondo ideias e expandindo meu conhecimento sobre a sétima arte.