Meninos de Tóquio (1932), de Yasujiro Ozu

Billy Joy Vargas
6 min readSep 30, 2021

Ainda dentro do cinema mudo, é realmente interessante a maneira como Yasujiro Ozu lida com a linguagem cinematográfica dentro deste contexto. Por conta dessa limitação, bem como pela temática do filme, percebe-se uma mise-en-scène menos sutil do diretor no tocante à dramaturgia de seus personagens. A performance física torna-se muito importante em Meninos de Tóquio, não só para a caracterização dramática das crianças, mas também no estabelecimento da ideia de hierarquias, algo que permeia todo o filme.

É através da encenação física que as liturgias próprias do universo infantil se manifestam de modo sensível, numa espécie de código tácito que representa uma era na cultura japonesa. São pequenas brincadeiras que estabelecem uma relação de dominância no grupo, assim como o mimetismo toma parte na construção dramática da relação entre irmão mais velho e caçula. O contexto infantil se apresenta aqui com noções de hierarquia como tamanho físico e temperamento, algo rudimentar, mas que inegavelmente encontra semelhanças na relação adulta em filmes de máfia estadunidenses realizados nas décadas seguintes.

Curiosamente, o filme parte desse universo das crianças mas, aos poucos, se expande na abordagem significativa do ambiente adulto dos pais. É pelo contraponto que Ozu estabelece as relações hierárquicas valorizadas nesse Japão de capitalismo emergente. O amadurecimento dos jovens, dramático por natureza, e que seria tão bem explorado em filmes como Ladrões de Bicicleta, acontece aqui por meio do embate entre a noção infantil de status e a realidade adulta.

Mas o que de fato torna o longa de Ozu em obra-prima é a maneira como o diretor desenvolve, magistralmente, cenas-chave da narrativa. São sequências que, ao mesmo tempo que isoladamente possuem grande valor estético, funcionam como verdadeiras tônicas da ideia geral do filme. Comentarei aqui brevemente sobre a primeira sequência-chave, dedicando maior atenção à segunda.

Primeiramente, o gatilho para o conflito. Numa exibição de filmes caseiros, os garotos notam, em tela, seu pai agir de modo cômico. É uma atuação física que se assemelha muito aos comportamentos anteriormente citados das crianças. Entretanto, o que os garotos percebem através disso é a posição hierárquica inferior de seu pai, em comparação com as suas dentro do pequeno grupo de amigos. O diretor se utiliza de maior dinamismo na montagem nesta sequência, com grande alternância de planos e contraplanos, para evidenciar essa desilusão. A quebra na idealização dos jovens ocorre justamente através desses contrastes que são sublinhados pela câmera: a constatação de que o pai não é exatamente um símbolo de seriedade e retidão, mas pode, e na verdade precisa, agir de modo semelhante aos filhos em determinadas situações nesse jogo de poder.

Toda a situação que advém dessa cena poderia ser resolvida com desembaraços, mediante uma atitude de cinismo irônico do pai com relação às preocupações infantis. Mas isso não acontece, precisamente porque a própria figura paterna possui suas dúvidas e frustrações com a situação. Isso é muito bem desenvolvido numa bela cena de diálogo entre marido e esposa, onde podemos notar elementos de decupagem mais similares aos articulados por Ozu em seus filmes posteriores.

O filme atinge sua resolução num final que se recusa a permanecer demasiadamente aberto. Isso se dá através de um sentimento de conformismo, mas que não reduz a narrativa a um aspecto raso, essencialmente porque Ozu equilibra muito bem essa conformidade perante o contexto social de seus personagens com uma sublimação de sentimentos muito própria da atitude infantil. Isso é muito bem articulado pela segunda cena-chave na qual dedico maior atenção.

Na verdade, é uma cena que funciona especialmente pelos seus contrastes com as anteriores. O intertítulo de início já sugere uma retomada de liturgias (“e então, como de costume”), um restabelecimento da harmonia entre pai e filhos. Contudo, o que Ozu faz é ressaltar pequenas diferenças dentro dessa ideia de rotina resgatada.

No início do filme, a cena de trajeto até a escola é tomada de sentimentos de dúvida e desânimo. O que começa com um diálogo harmonioso, no qual o pai relembra a necessidade de boas notas, se transforma num trajeto incerto na medida em que os irmãos se aproximam da escola. A câmera reforça esse desamparo na medida em que se mantém relativamente fixa e a uma certa distância, capturando a gradativa mudança de postura e ritmo no caminhar das crianças.

A última sequência do longa traz, novamente, esse trajeto. Porém, o sentimento é transfigurado para uma esperança comedida e um reestabelecimento da harmonia. Isso se dá pela união coesa que a cena traz entre esperança infantil e conformidade do dever adulto. A quebra do que, a princípio, poderia ser uma mera repetição da cena inicial , já se mostra diferente pela postura das crianças, mais distantes do pai, exibindo confiança, e se estabelece de modo mais claro pela chegada do chefe e seu filho. A partir daí, com a aceitação tácita dessa necessidade de coesão por parte de seus personagens, as cancelas se abrem e o futuro se apresenta como algo a ser enfrentado de maneira corajosa. Não temos mais um trajeto sozinho e distanciado. As crianças estão integradas ao universo litúrgico da escola, agora cientes de seus deveres, sem deixar totalmente de lado a sua visão infantil de hierarquia de seu grupo.

A vida é trabalho, para viver é necessário o alimento. O âmbito familiar necessita ser zona segura das hierarquias, por vezes duras, do universo do capital. Meninos de Tóquio consegue articular brilhantemente essa ideia, sem deixar de lado a noção que, depois da tempestade de sentimentos conflitantes, vem a calmaria de uma vida que diariamente apresenta novas situações.

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Billy Joy Vargas

Propondo ideias e expandindo meu conhecimento sobre a sétima arte.