História(s) do Cinema (1988–1998), de Jean-Luc Godard

Billy Joy Vargas
4 min readMay 21, 2021

A primeira reação que tive ao saber que Godard fez um documentário sobre história do cinema foi de estranhamento. Mesmo sendo um notório cinéfilo, não parecia casar a ideia de um cineasta de estilo progressivamente experimental e transgressor com a de um relato cinematográfico da história da sétima arte. Então, nos primeiros minutos de documentário, pude atestar o que deveria ser óbvio: Godard não fez um documentário propriamente sobre a história do cinema, e sim sobre histórias de cinema. A ideia aqui é de uma ode à sua multiplicidade. Histórias, com um “s”, como ressalta.

Histórias do cinema, histórias de cinema

A grande força do filme se dá na relação do cinema com o que não é propriamente cinematográfico. Godard expande assim o seu conceito de cinema múltiplo para além da película. Se toda história já feita é essencialmente uma história sobre humanos, as histórias de cinema também são. Falar de história do cinema é também falar de história das guerras, como muitos teóricos defendem, e Godard não se furta disso. O filme trabalha muito bem essa relação que se retroalimenta: enquanto as guerras moldaram o cinema como indústria e arte, o próprio cinema, por sua vez, molda a visão do público a respeito dos conflitos.
Godard aborda isso ao misturar, sem qualquer distinção, registros jornalísticos de guerra com obras de ficção. Registros de devastação e morte da guerra documentada são sobrepostos a planos cinematográficos. O neorrealismo italiano, que notoriamente influenciou a fase nouvelle vague de Godard, recebe especial atenção numa espécie de homenagem ensaística do diretor.

Histoire(s) du Cinèma: A pintura e o registro histórico sob a ótica de um cinéfilo

Mas além de ser ente importante naquilo que é histórico, o cinema também recebe influências de todas as outras artes, e aqui Godard dá um enfoque particular à pintura. A expressividade dos olhares e os pequenos detalhes de grandes quadros são abordados sob o ponto de vista da mise em scène cinematográfica. Evidentemente, o diretor não faz isso de modo didático e direto. Há toda uma ambiguidade que é preservada na relação entre essas artes, por meio da sobreposição de imagens e uma narração em off bastante lírica, que nos dá pistas de alguns sentimentos, mas que nunca se fecha em si mesma.

É como se estivéssemos assistindo ao pensamento criativo de Godard sendo gravado em película. Como se alguém tivesse lhe proposto fazer um ensaio sobre a história do cinema e nós fôssemos jogados para dentro do seu modo não convencional de criar. Sonoramente, as partes iniciais do documentário ficam marcadas pelo barulho do projetor. Repetido e acentuado dentro dos demais sons do filme, esse som funciona como um leitmotiv, de certa forma pautando o emaranhado que é a história da sétima arte. A narração em off de Godard, muito característica e já empregada em outros trabalhos, possuem um ritmo e uma entonação que dão um ar de solenidade para o que é falado. As histórias de cinema, na sua voz, tornam-se especiais, dotadas de um mistério a ser continuamente sondado.

E essa é uma ideia central para o documentário de Godard. O cinema como esse emaranhado de histórias e sentimentos que afetam a humanidade de maneira muito mais complexa que qualquer linearidade ou rótulo que possa ser utilizado. Não existe uma delimitação temporal clara. A estrutura é episódica somente em sua superfície, visto que não há divisão marcante de tema ou período histórico entre eles. Muito mais do que isso, os cortes e as sobreposições de planos constroem um diálogo entre diferentes eras do cinema. Ao invés de temporal, a conexão é sentimental, estando sujeita às subjetividades dessa montagem. Em alguns momentos, há uma sugestão, através de intertítulos, de que o filme irá entrar em algum tópico mais específico. Surgem nomes de diretores, filmes e movimentos cinematográficos, para logo em seguida tudo se misturar novamente. É por isso que seu documentário funciona como uma espécie de negação de qualquer linearidade. É a antítese autoconsciente do livro formal de história de cinema.

O fluxo de consciência de Godard encontra seu lugar na multiplicidade do cinema

Não é como se Godard buscasse extrair um significado objetivo a partir da soma de dois planos de filmes distintos. O que temos na realidade são narrações simultâneas, por vezes em idiomas diferentes, muitas vezes acompanhadas de intertítulos cortados, trucagens verbais, além da planificação sobreposta. Inconscientemente, fazemos uma escolha do que ouvir ver dentro de toda essa confusão. Se no início há um incômodo, isso se transfigura em uma aceitação da passividade do espectador. Se o dilema do cinéfilo moderno é o de nunca conseguir assistir a tudo o que gostaria (e que assim seja), Godard parece nos apresentar uma versão em miniatura disso. O cinema é múltiplo, complexo demais para se encaixar em qualquer rótulo, e Godard, como bom cinéfilo, sabe muito bem disso.

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Written by Billy Joy Vargas

Propondo ideias e expandindo meu conhecimento sobre a sétima arte.

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