Dear Comrades (2020), de Andrey Konchalovskiy

Billy Joy Vargas
3 min readJun 2, 2021

Podemos até afirmar que Dear Comrades é “anti-soviético” com base nos valores objetivos que aborda. De fato, o filme trata dos conflitos internos presentes na União Soviética e de uma espécie de desilusão por parte das pessoas a respeito do rumo que o país tomou. Entretanto, trata-se um filme muito mais dedicado em articular as contradições internas de cada personagem. A maioria dos personagens do filme vive um conflito interno entre a imagem que precisa passar, de acordo com seu lugar na sociedade comunista, e as particularidades do âmbito privado.

O maior exemplo disso está na personagem da mãe. A forma com que ela se veste, o seu penteado e a sua postura mudam radicalmente quando está no seu trabalho burocrático em comparação com sua vida privada. Nós acompanhamos mais especificamente a jornada dela em busca de descobrir o paradeiro de sua filha. Ela é uma soviética bastante convicta (apesar de já ter uma certa nostalgia do período de Stálin), enquanto a filha faz parte de uma juventude insatisfeita com o governo soviético. Nesse ínterim, ela recebe a ajuda de um agente da KGB para localizar sua filha. Não fica claro o motivo pelo qual esse agente está ajudando-a, mas ele parece simpatizar com a situação desesperadora dela.

Esse agente da KGB é outro exemplo interessante. Suas ações perante a situação da mãe levam a crer que ele é uma pessoa mais sensível do que se esperaria do cargo que desempenha. Entretanto, é cheio de contradições. Se em alguns momentos ele assume uma postura pessimista com relação à situação do país, em outros ele parece voltar a uma espécie de “piloto automático” em que repete os dogmas ideológicos típicos de um soviético convicto.

Na medida em que a busca pela sua filha vai se desenrolando em um desfecho aparentemente trágico, essa imagem da mãe de burocrata impecavelmente vestida vai se deteriorando, juntamente com a sua convicção ideológica. Ao menos, é o que aparentemente acontece. Mas na realidade é algo muito mais complexo do que isso. Não dá pra dizer que essa postura alinhada à ideologia de seus cargos é apenas uma máscara destes personagens, ou até mesmo uma faceta de suas personalidades que vai ruindo com o decorrer do filme. A ideologia soviética parece tão entranhada em suas crenças de vida que alguma parte deles sempre mantém vivo um certo otimismo, mesmo nos momentos mais desoladores.

Com isso, a fotografia em preto e branco escolhida pelo diretor Andrey Konchalovskiy acaba sendo muito mais do que um mero acessório para evidenciar a época. Ela é uma manifestação formal da imobilidade ideológica dos personagens. Parados no tempo, datados tal qual uma foto em preto e branco, alguma parte deles estará sempre devota à URSS que eles viram nascer, e da qual carregam uma nostalgia do que para eles eram os “bons tempos”.

Toda a cena final, quando a mãe volta para casa, evidencia muito bem isso. No alívio de encontrar a filha viva, ela afirma que tudo será melhor a partir de agora. Como? Não sabemos. Talvez ela seja mais compreensiva com sua filha, talvez até mesmo passe a compartilhar publicamente de algumas de suas insatisfações. Mas a impressão que fica é a de que essa não-tragédia funciona também como um alívio às suas crenças. Agora está tudo bem, a sua URSS está salva, ao menos no seu coração.

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Billy Joy Vargas

Propondo ideias e expandindo meu conhecimento sobre a sétima arte.