Cristine e Crash: a relação homem-máquina no seu aspecto extremo
A indústria automobilística estadunidense foi, durante décadas, símbolo de progresso intimamente atrelado ao american way of life, com metrópoles construídas em torno do trabalho produtivo relacionado a este setor. A presença do carro americano, com seu respectivo nível de sofisticação, era definidora de status num âmbito familiar. É através desse imaginário coletivo do país, que sempre deu alta significação ao carro como definidor de sucesso, que Christine (1983) e Crash: Estranhos Prazeres (1996) desenvolveram abordagens extremas e, de maneiras opostas, articularam comentários a respeito da mais estreita relação homem-máquina presente na sociedade.
Dirigido por John Carpenter e adaptado de uma obra de Stephen King, Christine inicia numa sequência de “origem do vilão”, inicialmente nada mais do que um carro numa extensa linha de produção da potente indústria americana dos anos 50. Mas Christine tem algo de especial: no meio de tantos idênticos exemplares beges de Plymouth Fury, sua cor vermelha característica já chama a atenção para a força que possui. De algum modo (e, felizmente, o filme não se dedica a explicar isso de modo claro), há algo de sobrenatural em Christine que a torna radicalmente diferente de mais um exemplar de quatro rodas da indústria.

Aqui, é preciso que atentemos para uma situação: o ato de dar nome humano a uma máquina é algo especialmente natural dentro da sociedade estadunidense. A relação desta sociedade com o carro parece algo tão íntimo que, quando se estabelece que o nome deste Plymouth Fury vermelho é Christine, não há muito espaço para estranheza. Tal atitude reverbera ao longo do filme no modo como os personagens se dirigem ao carro e, mais especificamente, numa espécie de aceitação destas pessoas perante o seu caráter sobrenatural. A presença do sobrenatural aqui poderia ser vista com cinismo, caso se manifestasse de modo desconectado ao carro (por fantasmas, possessões, ou qualquer entidade costumeira do cinema de gênero). Contudo, parece existir uma noção muito clara no filme acerca da conexão que existe entre homem/carro nessa sociedade americana materialista, na qual se torna aceitável inferir personalidade e vontades próprias ao que não é humano.
O que torna essa abordagem realmente interessante, e descola o filme de uma mera ilustração da história literária, são as escolhas formais de Carpenter para o desenvolvimento da narrativa. Há uma economia muito clara no sentido de decupagem quando as situações de conflito no filme são primariamente entre personagens humanos. As sequências são resolvidas em poucos planos, com maior atenção à movimentos de câmera que buscam acompanhar os personagens, ou no plano fixo que explora a reação destes personagens ao que é falado extracampo.
Por outro lado, quando Christine faz-se presente em cena, o filme adota uma decupagem de maior dinamismo e, de modo ainda mais marcante, assume o carro como ente ativo na mise-en-scène. A composição dos planos e os travellings no entorno de Christine trabalham na construção de uma força cênica direcionada ao carro. Durante as perseguições, através de cortes que alternam os movimentos de choque com planos-detalhe, o filme se dedica muito mais na repercussão desses choques no carro do que nos personagens humanos. De fato, a única morte realmente concretizada em tela (e também a única presença marcante do sangue durante o filme) é a de Arnie na sequência final.
Acaba sendo natural que o personagem mais inseguro e com problemas de relação humana no filme seja envolvido pela materialidade sobrenatural de Christine. No decorrer do filme, essa relação entre homem e carro sugere um tom erótico. Todos os elementos da cena da primeira reconstrução de Christine trabalham na concretização de um fetiche que se assemelha a um show de strip, seja na iluminação, nos planos-detalhe do carro em regeneração, que recebem um tom erótico ampliado pela trilha-sonora, ou na atitude entorpecida e voyeur de Arnie.



Seguindo nessa ideia do erótico que advém de uma relação materialista, podemos agora nos debruçar no modo como Crash: Estranhos Prazeres, de David Cronenberg, explora esse imaginário americano. Em primeiro lugar, é necessário observar como a repercussão midiática em torno do lançamento de Crash buscou, em muitas ocasiões, problematizar diferentes aspectos do filme. Numa matéria que se tornou notória, o jornal britânico Daily Mail clamou pelo banimento do filme de Cronenberg no país. Sua premiação especial em Cannes foi alvo, segundo Francis Ford Coppola, de questionamentos exacerbados por parte de membros do júri. As imprecações com relação à obra tiveram os mais variados alvos: sua obscenidade, sua postura irresponsável perante condutas de trânsito, ou até mesmo um suposto desrespeito a pessoas com deficiência.
Toda a discussão moral em torno da ideologia de um filme acaba, invariavelmente, se estendendo para outros campos que fogem do objetivo deste ensaio. Contudo, é interessante pontuar como essa ideia de obscenidade em torno de Crash se manifesta muito mais pelo imaginário do espectador, a partir do caráter sugestivo presente no filme, do que por uma frontalidade visual. O sexo em Crash consegue ser fetichista e, ao mesmo tempo, elegante no sentido de lidar com o obsceno de modo mais fantasioso. É radicalmente diferente de um filme de Lars Von Trier, por exemplo, onde os desejos sexuais tornam-se concretos de um modo quase animalesco, e toda sua unidade estilística trabalha nesse aspecto cru que busca tornar tudo muito explícito.

Aqui, Cronenberg aborda o sexo como ente de algo maior dentro de sua mise-en-scène: uma espécie de sinergia homem-máquina que busca testar os limites físicos de cada parte atuante. A cena no lava-carros, talvez a mais marcante do filme, concretiza de modo brilhante essa ideia. A movimentação em tela se dá de modo coordenado ao que acontece dentro do carro, elementos como o movimento do teto retrátil e das escovas trabalham numa sinfonia de som diegético, aliados ao dinamismo da imagem, que simboliza a concretização do erótico através do mecânico. O fetiche dos personagens recebe uma ampliação sensorial por conta dessa mise-en-scène que não separa o toque humano do movimento maquinal, num jogo sinérgico de sons e texturas.




Se em Christine, há a sugestão do erótico na maneira como o carro se regenera após as batidas, e em como isso se conecta a um protagonista que, após uma vida de abusos na escola, encontra-se fortalecido, em Crash o erotismo existe de uma forma bastante oposta. No filme de Cronenberg, a fonte do desejo está na batida, na cicatriz, em qualquer marca que simbolize uma experiência extrema entre homem e máquina. Carpenter busca a valorização da resiliência de Christine, numa fachada aparentemente intransponível e inabalável que repercute no seu protagonista, gradualmente tornando-o mais máquina e menos homem. Em Crash, é justamente essa fragilidade, essa atitude que assume uma falta de controle perante algumas situações da vida (talvez o sentimento mais assustador causado por um acidente de carro), que provoca o prazer nos seus personagens. Aqui, a ressonância homem-máquina acontece pelo descontrole, presente no resultado dos acidentes e no desejo sexual irrefreável.
Portanto, o que temos aqui são dois diretores muito cientes de como explorar um imaginário cultural, de modo a subverter certos conceitos tradicionais da sociedade. A conquista do primeiro carro pode não resultar na saudável autorrealização, quando a máquina toma conta do homem numa repercussão extrema da sanha materialista. Um acidente de carro pode não abraçar apenas sentimentos de luto e medo daqueles que sobrevivem, quando as marcas da tragédia tornam-se fetiche numa relação entorpecente de descontrole. De modos distintos, Carpenter e Cronenberg provocam reflexões a respeito dos extremos na relação homem-máquina.

