Capitu e o Capítulo (2021), de Júlio Bressane: Filme-Silhueta
Capitu e o Capítulo é uma interessante releitura que explora muito bem os aspectos sugestivos da obra de Machado, especialmente através de uma composição visual que consegue alternar certo rigor com liberdade de decupagem.
Há um cuidado muito evidente na composição dos quadros compostos de diálogos entre os personagens. Em muitas cenas, seus posicionamentos parecem meticulosamente pensados de modo a ocupar harmonicamente o plano. Além disso, existe um diálogo imagético muito interessante entre personagem e cenário, especialmente na presença de pinturas, emolduradas ou nas paredes.


Além de visualmente gratificante, pela sua composição plástica, essa estética transmite um estado de imobilidade, algo que pode remeter ao teatral, mas que aborda também outros aspectos, como o caráter perpétuo dessa obra literária inspiradora. Bressane parece sugerir um estado de coisas imutável na sua mise-en-scène, articulando um comentário a respeito de histórias como a de Capitu e Bentinho e suas imortalidades no imaginário cultural.
É algo que remete um pouco ao Barry Lyndon do Kubrick, no sentido de construir um universo perene, uma dedicação à mise-en-scène que configura o aspecto de pintura para os planos. Contudo, diferentemente do diretor americano, Bressane aborda maior frontalidade cênica, especialmente devido ao caráter mais claustrofóbico de seus cenários (em comparação com a grandiosidade de Lyndon), mas também por não apresentar grande rigor nos movimentos de câmera, cobrindo assim uma menor quantidade de espaços do que a decupagem de Kubrick.

As inserções de Enrique Diaz como Casmurro reforçam ainda mais essa ideia de letra indelével presente no filme. Há uma dialética muito bem estabelecida aqui entre encenação autoconsciente de seus personagens e lembranças de um imaginário cultural a respeito da história. Acaba sendo uma provocação à reflexões sobre a obra e suas reminiscências e, ao mesmo tempo, um chamado à releitura “in loco”, um exercício de construção retroalimentada entre espectador, diretor e atores.
Através dessas situações já conhecidas ao público, Bressane empreende variações formais e dramáticas que configuram o filme como realização de um dos diretores mais criativos do cinema nacional. Seus cenários possuem o aspecto datado da história, mas não são cuidadosamente elaborados no nível que se esperaria para filmes de época. O olho observador pode perceber muito bem ali um caráter anacrônico, ao passo que os cenários não existem exatamente dentro do tempo histórico do livro, e sim num universo contemporâneo que busca ser antiquado.


O próprio estilo das atuações, especialmente a de Ximenes, não busca uma dramaturgia com texto e entonação muito característicos de época. Há uma mistura curiosa de texto romanceado do realismo modernista com atitude contemporânea de confrontação por parte de Capitu.
A decupagem, rigorosa em muitos momentos, assume um caráter livre em momentos pontuais, como nas cenas de confusão sentimental de Bentinho. É algo que até poderia soar didático demais, no sentido de utilizar oportunamente recursos para evocar um estado de espírito dissociado do caráter geral do filme. Mas parece funcionar muito bem, principalmente no diálogo com a ideia de filme anacrônico. Como o que está em tela já não se dedica a ser totalmente datado, como existe ali elementos vigentes muito claros, sua quebra formal se apresenta muito mais como uma transgressão à palavra perene da história inspiradora.
Com isso, o filme de Bressane possui um caráter muito único. Capitu e o Capítulo propõe-se como releitura e, através dessa ideia, concilia magistralmente uma atitude geral implícita no livro com escolhas estéticas muito próprias de um diretor contemporâneo.
Sempre digo que uma adaptação “fiel” não é aquela que simplesmente propõe ilustrar os acontecimentos básicos de uma história literária. A percepção de uma atmosfera específica para o texto, e a criatividade artística de realizar isso cinematograficamente, parece ser um caminho muito mais eficaz nesse sentido. Aqui, Bressane utiliza a releitura para capturar uma ideia de sugestões.



O seu apreço pela silhueta, traçada através de sombras ou destacadas sob vidros e luzes sugestivas, é o grande indicativo formal disso. O plano final de Capitu, difusa e repartida pelo jogo de luzes, concretiza de modo brilhante a sugestão máxima em formato fílmico. O filme-silhueta parece ser a única maneira possível de tratar obra tão imortal.
